Ano 1941.
Era domingo, e estávamos na missa. Não ousei retirar as luvas brancas, sempre gostei da maciez da renda contra minha pele. Mamãe dizia que esse tipo de comentário era inapropriado, mas eu gostava não apenas de renda, mas a seda da anágua também causava arrepio nas minhas pernas. Nunca contei isso a ela.
Firme, eu segurava o hinário e o terço. Mantinha a voz suave e cantava de queixo erguido como se cantasse diretamente ao Cristo, logo atrás do padre Aurélio. Este, por sua vez, não parecia se importar com o tempo fechado lá fora; ao contrário, seu semblante era de pura alegria, talvez por ver a igreja cheia e o coroinha recebendo muitos donativos na sacolinha.
Ao lado da minha mãe, tentava prestar atenção nas palavras do padre, mas não conseguia evitar olhar para os bancos do outro lado da cúpula; nem mesmo quando minha mãe me cutucava exigindo atenção eu me mantinha firme. Sabia que, sentado do outro lado, estava meu futuro marido e sua família e, nessa última investida, percebi que ele também olhou na minha direção. Abaixei os olhos e sorri sozinha, afinal, que mulher não gostava de ser apreciada? Automaticamente pedi perdão a Deus. Como pude pensar algo assim?
Tentando respeitar o local, mantive por mais um tempo a atenção no padre Aurélio, mas sem resistir voltei a olhar para os bancos ao lado e, além do meu noivo, vi sua irmã. Meus olhos foram dele para Joana, que sorriu. Acho que ela percebera que ele me admirava. Será que fora possível sentir o mesmo calor que eu, quando, por alguns segundos, nossos olhos se cruzaram?
A missa acabou e, do lado de fora, ficamos aguardando meu pai, que alegremente conversava com os conhecidos. Ninguém tinha autorização de se afastar, nem mesmo eu, que com quase 19 anos e noiva, poderia ir longe dos olhares dele ou da minha mãe. Minhas ordens eram cuidar de meus três irmãos e fazê-los se comportar perante os olhos dos demais, porque isso seria a prova que num futuro breve eu seria uma boa mãe.
Meu noivo, como o de todas as moças da minha idade, fora escolhido pelo pai que, muito entendedor e, no meu caso, esperto também, não aceitaria ninguém menos que um rapaz jovem, formado na capital, com uma família de reputação e que tivesse condições de prosperar ainda mais nos negócios. O dinheiro nos dava muito mais que conforto. Mantinha-nos no topo da sociedade e deixava meu pai sempre feliz. Se o homem da casa estivesse feliz, todos estariam também, dizia sempre minha mãe, e ela sabia das coisas.
Porém não sou tola, conheci moças que eram contra esse tipo de pensamento. Algumas se rebelavam jurando nunca aceitar se casar sem amor, diziam ser relacionamentos fadados ao fracasso. Mas eu não me importava, minha mãe se apaixonou pelo meu pai, mesmo o tendo oficialmente conhecido apenas dias antes do casamento, outrora tudo que fazia era olha-lo de longe e não teve um dia sequer que eu a visse infeliz. Muito pelo contrário, todos os dias ela conseguia ser ainda mais airosa e vivia sorrindo. Tinha meu pai em suas mãos e eu sempre tive certeza que seria igual comigo.
Mamãe dizia que a vida de uma mulher não precisava ser infeliz, bastava saber o momento certo de abrir a boca e usar suas armas. Nem sei quantas vezes a ouvi comentar sobre suas aventuras quando moça. Sempre fui uma alma livre, ela dizia. Eu a admirava, porque ela era forte e decidida, porém nunca me explicou quais eram as armas que um dia eu usaria, apenas me fez entender que mais cedo ou mais tarde as reconheceria.
Uma correria entre os meus irmãos mais novos, e fui obrigada a molhar o dedo com saliva para limpar o rosto sujo de meus irmãos rebeldes. O mais velho entre os meninos há muito se achava um rapaz, mas ainda era um frangote abusado. Quase quinze anos e já estava mais alto do que eu. Sorte meu sapato ter salto, caso contrário seria humilhante esse momento. Enquanto o limpava, estiquei os olhos na direção do meu noivo; não queria causar má impressão com as crianças correndo daqui para lá desordenadamente; e como já era de se esperar, ele me olhava. Galantemente moveu a cabeça erguendo o chapéu num aceno e deixou escapar um sorriso manhoso. Mantive-me firme, não quis dar motivo a boatos, sabia que logo mais ele daria um jeito de nos vermos, ao menos por alguns minutos, a sós. Soube que minha sogra não viera porque estava acamada e em minha mente agendei uma visita para o dia seguinte, talvez biscoitos a alegrassem. Um pouco ao lado dele mantinha-se Joana, sua irmã. Ela delicadamente acenou e eu, sem pensar, sorri, abaixando os olhos. Talvez tivéssemos a mesma idade, ou ela fosse um pouco mais velha. Tão bela era a Joana, por que será que ainda não estava noiva? Arrumei a gravata do rapazinho a minha frente, mas precisei retornar o olhar a ela. Seu blazer e saia evasê, repleta de pregas, caíra-lhe muito bem, e por um instante desejei tocar o tecido de suas roupas.
— Vai demorar muito? — reclamou meu irmão, e só então acordei, já que ainda segurava firme seu rosto.
— Não seja malcriado!
— Direi à mamãe que estava fazendo de novo.
— E o que eu estava fazendo, rapazinho? — Aprumei-me.
— Olhando seu noivo…
Por um instante sorri. Criança ingênua essa à minha frente.
— Escute aqui, seu abusado! Você me respeite!
Queixo levemente erguido e dedo em riste, exatamente como mamãe havia me ensinado; alguns segundos e ele recuou.
— Desculpe.
— Não ouse me difamar. Papai morreria se eu os envergonhasse! — completei firme, mesmo que por um segundo tenha olhado na direção de Joana, que ainda sorria para mim.
Cabisbaixo, ele se afastou, e só então guardei o lenço na minha bolsa de mão.
Como num roteiro, sabia o que viria em seguida e foi assim que aconteceu. As crianças haviam se entretido com o sapo que procurava caminho na lateral da igreja e, por um instante, tive sossego. Minhas amigas se aproximaram e, com elas, Joana também, todas sabiam o que fazer. Uma aglomeração de moças me daria alguns minutos a sós com meu noivo no cemitério atrás da igreja, e sorrateiramente segui.
Por entre os túmulos o procurei. Firme segurava minha bolsa de mão e o chapéu, pois agora ventava muito, deixando claro que não tardaria a chover, e consequentemente os minutos que dispúnhamos resumir-se-iam em segundos, assim que o joanete do meu pai desse a primeira alfinetada, fazendo-o acordar para o tempo ruim.
Antes de alcançar a segunda estátua grande de anjo, fui agarrada e soltei um grito que foi sufocado com as mãos fortes de meu noivo, que me seguravam.
— Achei que fosse… — tentei dizer, apontando a próxima estátua mais à frente, porém, sem me deixar dizer qualquer outra palavra, fui beijada, e, assim que terminou, deixei um risinho escapar sem saber ao certo o que fazer. — Como está sua mãe…? — quis questionar, mas ele me silenciou dizendo que não teríamos tempo para conversar. A chuva não demoraria a chegar, e mais um beijo aconteceu.
Era possível perceber nitidamente sua empolgação, pois seus braços não se importavam em me apertar contra seu corpo, mas ainda assim era como se ele não estivesse lá. Senti-lo dessa forma não parecia tão excitante como minhas amigas comentavam que acontecia quando estavam nos braços de seus noivos. Em uma revista, li que beijos devem ser dados sempre de olhos fechados, mas pensei, por um instante, o que aconteceria se eu abrisse os meus e assim o fiz. Deixei que ele continuasse me beijando e até permiti um beijo totalmente inadequado no pescoço, foi quando percebi que Joana caminhava pelo cemitério. Seu cabelo rebelde esvoaçava no ritmo do vento, totalmente livre e belo. Claro que ela havia nos visto e agora nos olhava, talvez estivesse me julgando, porque nesse momento eu mesma estava. Então, afastei meu noivo. Sua respiração era apressada, e seu sorriso denunciava o quanto havia gostado de estar ali comigo aos beijos, mesmo que por apenas alguns minutos. Apenas sorri, tentando manter as aparências.
— Isabel! — ouvi a voz firme de meu pai, e agora sim meu coração disparou, mas foi de pavor. Meu noivo fez menção de enfrentá-lo, mas eu o segurei indicando o caminho oposto, para que tudo não ficasse ainda pior. Ouvi os passos de meu pai se aproximando enquanto ainda me gritava. Eu me encolhi encostada na parede da grande lápide. Pensei que se eu fingisse estar rezando, ele me perdoaria. Talvez se eu inventasse uma história sobre ter precisado de alguns minutos para refletir sobre o sermão, seria aceitável também, mas assim que ele se pôs à minha frente, as palavras sumiram.
— O que uma moça de respeito está fazendo aqui sozinha? Ou será que havia alguém com você, Isabel?
— Papai!
— Ora veja! Explique-se logo, menina!
Abri a boca tentando colocar para fora qualquer desculpa, mas então o choro apareceu. Não o meu, porque se eu chorasse seria como me entregar dizendo ser culpada por algo, e com certeza, não seria tola a esse ponto. Mas alguém chorava na outra ponta da lápide e, não demorou, meu pai caminhou até lá.
— Mas o quê… — ele disse sem terminar a frase, e no segundo seguinte Joana se jogava em meus braços num choro que não parecia real, mas ainda assim insistente.
— Você a encontrou? — Era minha mãe, que agora nos olhava, e como meu pai e a mim, não entendia nada. Joana me soltou e se abraçou à minha mãe, falando algo sobre sua mãe acamada e, só então, todos pareceram entender. — Tudo bem, querida… Tudo bem… — Suavemente mamãe batia sua mão nos ombros de Joana.
— Jorge, eu lhe disse. Deixe-as conversar! Ela está reconfortando a futura cunhada! Quer prova melhor de que é uma moça decente?
Desconcertado, meu pai foi se afastando. Comentou algo sobre a chuva que não tardaria, e minha mãe o seguiu devolvendo Joana a meus braços.
Eu a mantive ali, primeiro porque quis que meu pai visse que ela supostamente ainda chorava e a segunda razão, eu não sabia ao certo explicar, apenas gostei de tê-la encostada a mim por um tempo.
Minutos depois, Joana ergueu o rosto e sorriu. Não havia qualquer vestígio de choro. Perguntei-me como alguém podia mentir tão descaradamente. Porém, tudo que consegui fazer foi agradecer.
— Obrigada… — deixei a palavra sair, e ela permitiu que seus dedos alinhassem meu cabelo bagunçado pelo vento.
— Seu cheiro é bom — disse Joana, deixando claro ter sentido o aroma pelo vento a seu favor.
— Foi mamãe quem encomendou, é o tal perfume novo que todas falam.
Tentei um ar natural, mas ela se inclinou, aspirando a fragrância novamente. — Ele beija bem?
— O quê? — transpareci indignação pela pergunta inesperada e tentei olhá-la, já que ela nem havia se afastado completamente.
— Meu irmão. Ele beija bem?
— Ora, que tipo de pergunta é essa? — Arrumei meu vestido e acertei a luva, olhando-a novamente. Ela mantinha-se perto, então quem deu um passo para trás fui eu. — Deixe de bobagens!
— Não me pareceu que você estava aprovando…
— Ele é meu noivo, o que eu poderia fazer? — Caminhei, deixando claro que estava na hora de retornarmos. Não me importei em passar por ela sem pedir licença, afinal, que tipo de pessoa se mantém tão perto? Eu já me sentia inebriada com tal aproximação. — É constrangedora a sua falta de educação, Joana!
Ela caminhou mais rápido e parou à minha frente. O vento já não deixava meu chapéu nem minha saia em paz. Como ela poderia estar ali parada com aquele sorriso bobo no rosto?
— O que você quer, afinal? Eu já agradeci.
— Não quero nada não, só estou te olhando, Isabel.
Ruborizei, tenho certeza que sim. Só não sei explicar o motivo.
— Preciso ir.
Ela simplesmente me deu passagem e, como um cavalheiro, inclinou-se me indicando o caminho.
— Comporte-se como uma moça! — comentei, imitando a minha mãe, e não hesitei em bater de leve com a minha bolsa de mão sobre a cabeça dela que permanecia inclinada. — Onde já se viu agir assim?
Alguns passos segui sozinha, mas logo ela me alcançou. Apenas estiquei os olhos para me certificar do que já sabia. Caminhávamos lado a lado e, sem constrangimento, ela segurou minha mão.
****
— No que está pensando, querida?
— Nada! — Pulei de susto na cama só me dando conta agora que ainda segurava o botão da camisa de Joana. Deveria estar mal costurado e quando ela me abraçou ele simplesmente veio parar entre meus dedos. Não sei por que não devolvi.
— Hora de dormir, filha. Boas moças dormem cedo para acordarem dispostas e belas.
Acompanhei-a com os olhos. Primeiro acertou todos os vidros de perfumes da minha penteadeira, conferiu se a escova de cabelo estava limpa, confirmou a janela bem aberta para o quarto não ficar abafado e, antes de virar-se, parou em frente ao espelho para uma última olhada enquanto alisava a camisola.
Deixei um sorriso escapar; minha mãe era a representação da beleza, talvez até as deusas sentissem inveja dela. Não cansava de contar a história de como rezou por meses para que seu noivo fosse meu pai, o rapaz que ela sempre via quando ia com minha avó ao mercado do centro da cidadezinha. Uma mulher apaixonada. Era assim que se definia, e eu acreditava que ela realmente fosse. Fazia aquilo parecer certo. Sempre me aconselhou a nunca negar o amor.
Na manhã seguinte, o carro estacionou em frente à grande propriedade de meu noivo. Eles me aguardavam, afinal, não ousaria fazer uma visita sem prévio aviso. Dessa vez, minha mãe permitira que eu viesse sozinha, achou que minha sogra doente ficaria feliz por ver minha preocupação genuína. Nos braços, carregava uma cesta com biscoitos e geleias. Juro que tentei fazê-los eu mesma, mas talvez meu forte fosse cuidar de crianças, e não a cozinha.
A grande porta foi aberta, mas antes de eu entrar, alguém, que a princípio imaginei ser um cavalheiro, guiava um automóvel fazendo círculos no grande pátio. Usei a bolsa de mão para tapar o sol e poder enxergar corretamente. Joana estacionou o carro e depois que desceu sorriu ao senhor que a aguardava, parecendo dar-lhe novas instruções. Um instante depois ela seguiu pela entrada lateral da casa. Provavelmente não gostaria de ser vista trajando calças, depois de guiar um veículo. Por que tanta ousadia?
Meu noivo não estava, já sabia disso; provavelmente estaria advogando, coisa que se esperava de um profissional recém-formado. Fui conduzida ao jardim lateral, onde uma senhora estava sentada tomando banho de sol. Tentei um sorriso, mas a vi tão abatida, que pensei se não havia demorado demais para vir visitá-la; porém sua alegria aflorou assim que me aproximei.
— Que encanto, minha jovem. Não imaginava que viria sozinha.
— Minha mãe pediu desculpas, está envolvida com…
— Bobagem — deu com a mão. — O importante é que você está aqui.
Por alguns segundos, observamos os pássaros que pousavam no comedouro perto da fonte. Havia vários, e pareciam ter tirado a manhã para embelezar aquele lado do jardim onde estava minha futura sogra.
— Como se sente?
— Bem. — Sua firmeza me fez entender que não me diria seu real estado de saúde, e talvez eu mesma não estivesse apta a saber.
Ambas olhamos quando, correndo, passou Joana, que tinha um grande pedaço de bolo nas mãos. Atrás dela, vinha uma senhora negra que parecia lhe dar uma bronca.
Deixei o riso escapar pela correria, mas fiquei séria assim que percebi o semblante de minha sogra.
— Joana é um espírito livre, e isso me preocupa.
— Sua filha é uma pessoa boa, fique tranquila. Com o tempo, tudo se ajeita.
— Ela ainda se balança no lustre — comentou a distinta senhora, e eu ruborizei.
Uma vez, Joana e eu passamos uma tarde juntas, e ela me desafiou a balançar no grande lustre da sala daquela imensa casa. Arriscado e audacioso demais para mim. Porém, ela o fez, e eu a admirava ir e vir, imaginando como desceria dali, até que sua mãe chegou acompanhada da minha, e a confusão foi tremenda. Para que ela não fosse castigada tão severamente, falei que a ideia havia sido minha, como uma aposta inocente. Todos acreditaram, e ambas ficamos meses sem sobremesa.
— Lamento por aquela tarde…
— Não tem mais importância. Quero apenas que me prometa, querida.
— Sim…
— Quando eu partir e você for a senhora dessa propriedade, prometa-me que mandará Joana para o convento. Ela é um pouco moderna para o nosso tempo, e estar perto de Deus irá corrigir isso.
Segurei-lhe a mão e firme olhei em seus olhos. — A senhora viverá por muito tempo. — Ela sorriu, deixando claro que seu tempo estava acabando, mesmo que eu desejasse o contrário.
— Apenas a entregue a Deus, Ele saberá o que fazer… — Recebi alguns tapinhas de sua mão com pele enrugada e flácida, já que ela havia perdido muito peso.
— Prometo que estarei sempre de olho nela — sorri largamente quando Joana conseguiu escapar da senhora negra, que não se intimidara e continuara a bronca, exigindo que ela devolvesse o bolo.
Encantada, minha sogra comeu os biscoitos e os elogiou, acreditando ter sido eu quem os fez. Conversamos sobre a data do casamento, que somente na noite anterior, fiquei sabendo ter sido antecipado devido ao estado de saúde dela.
Antes de partir, pedi para falar com Joana; desejava entregar-lhe o botão, mas não contei esse detalhe a sua mãe.
Um dos empregados me indicou o quarto como se eu não o conhecesse. Bati de leve na porta, mas ela pareceu não ter ouvido. Retirei a luva, achando que por algum motivo o cetim estivesse abafando o som, e quando novamente fui bater, Joana a abriu antes que eu conseguisse tocar a madeira.
— Entre, senhorita!
— Obrigada. — Caminhei alguns passos olhando tudo no quarto. Além da cama grande e do espelho ornamentado ao lado, havia um manequim, fitas métricas e tecidos.
— A que devo a honra de sua visita?
— Você é modista? — Sem qualquer cerimônia me dirigi aos tecidos. — Desde quando costura? — Deixei-me ser abraçada pela maciez e admirei as estampas. Que maravilhoso senti-los sobre a pele. Cetim! — Meu sorriso alargou, e Joana se aproximou. — Sinta, não é maravilhoso? — Fiz com que suas mãos tocassem o tecido sem me lembrar que ela provavelmente os manuseava a todo instante. — Desculpe-me! — pedi, soltando a sua mão, mas ela permaneceu segurando a minha. Apanhou o cetim e o afagou das pontas dos meus dedos até meu rosto.
Quando o silêncio se prolongou, afastei-me.
— Não sabia que costurava.
— Pois, agora sabe! — Folgadamente ela se jogou na cama, e só então reparei que continuava com roupa masculina.
— As calças não te incomodam?
Por um instante ela se olhou e voltou a me olhar.
— Nunca usou uma?
— Imagine — comentei, afastando-me ainda mais dos tecidos para me aproximar do manequim. Próximo a ele estavam a máquina de costura e desenhos de roupas, os quais não resisti em olhá-los.
— Sério que nunca usou uma calça?
Nem precisei olhá-la para responder, apenas gesticulei. — Minha mãe não deixaria mesmo que eu pedisse. Ela acredita que as pernas precisam respirar, e calças não fazem bem esse trabalho.
Joana levantou-se, começou a abrir a fivela do cinto e, sem qualquer constrangimento, foi retirando a calça, que agora parecia enroscada nas botas.
— O que está fazendo, sua maluca?!
— Vou deixá-la experimentar.
— Não vou vestir uma calça! Isso é inapropriado para uma moça.
— Claro, claro! Imagino que estar aos beijos no cemitério com meu irmão é totalmente aceito aos patrões de etiqueta e bom comportamento das moças virgens, não é?
— Ora… quem pensa que é? — disse já me virando para sair, mas Joana me alcançou e segurou meu braço.
— Isabel…
— O que é?
Mantive-me firme como minha mãe fazia quando desejava deixar claro a meu pai que algo não a agradara, mas Joana não dizia nada. Apenas mantinha seus olhos em mim.
— O que foi? — insisti puxando meu braço, mas ela segurou minha mão que ainda estava sem a luva, por eu ter tentado bater à porta há pouco.
— Eu nasci errado, Isabel.
— O quê? — Tentei entender, mas ela se afastou indo olhar pela janela. Em seus braços a calça permanecia firme e sua camisa de cavalariço mais parecia um vestido curtinho. Demoradamente pude observá-la, e ela parecia bela só de camisa e botas.
— Sabe, Isabel, não é porque não sente nada que não está fazendo algo errado… — encarei-a quando ela me olhou. — Sabe disso, não sabe?
— Vou me casar com ele.
— E vai morar aqui! — Eu a acompanhei andar de um lado para o outro, e em algum momento ela embolou e jogou a calça no chão, chutando-a longe. — Quinze dias! Daqui a quinze dias!
— Sua mãe está morrendo… Eles quiseram…
— Eu estou morrendo!
Apavorei-me e fui seguindo até ela. — Está doente também?
— Morrendo de amor, sua idiota!
Ela avançou e eu recuei, recuei e recuei batendo as costas na penteadeira. Tentei apoiar-me, mas os vidros de perfumes tombaram; alguns foram parar no chão, e os cheiros se misturaram.
— Não case com ele… Balance no lustre comigo.
— Isso é loucura.
— E por que viver, se não fizer loucuras?
Abri a boca e a fechei. Tudo que eu conseguia pensar era “perto demais, perto demais”, até que uma das empregadas bateu à porta se identificando. Joana afastou-se, e a moça entrou. Olhou de uma para a outra e longamente para Joana sem a calça.
— Costurando, senhorita?
— Sim! Um coração foi rasgado, e eu tentava remendá-lo, mas é impossível.
Novamente a empregada esticou os olhos na minha direção visto que ainda apoiava-me na penteadeira. Sorri, enquanto me endireitava e, instintivamente, passei a mão no cabelo ajeitando o chapéu. Recoloquei a luva que havia tirado, abri a bolsa de mão retirei o botão e o entreguei à Joana. Abracei-a educadamente, beijando-lhe a face. O último beijo, além de demorado, foi regrado com um segredo.
— Darei um jeito, Joana.
***
Dois dias depois, em casa, passei horas sobre um tablado em frente a um grande espelho, enquanto o vestido de noiva ganhava forma. Foi ideia da minha mãe que Joana entrasse na igreja levando as alianças. Recusei. Mas ela foi taxativa dizendo que a recusa iria gerar boatos sobre a possibilidade de não nos darmos bem. Dias depois Joana apareceu para que a modista também lhe fizesse um vestido. Contestei, mas minha mãe nem me deixou explicar que Joana sozinha faria um vestido melhor do que qualquer modista vinda de fora. Vencida, passamos a tarde, as duas sobre os tablados e as modistas costurando, e em momento algum Joana olhou diretamente para mim.
Na tarde seguinte, quando, por um instante, as modistas nos deixaram sozinhas, enfrentei-a.
— Por que não me olha? — questionei, mas ela manteve-se firme olhando apenas para o espelho; nem do tablado havia descido.
— Entendi o que quis dizer quando falou que daria um jeito, Isabel.
— Como assim?
— O convento.
Recuei e avancei ao mesmo tempo. Ela entendera errado.
— Foi sugestão de sua mãe, eu nunca… — Tentei segurar sua mão, mas ela a retirou. Seguiu para o outro lado do quarto olhando pela janela o tempo, que parecia fechado.
— Minhas malas estão prontas, Isabel. Não entrarei na igreja. Estou aqui apenas para cumprir as convenções. Minha mãe dirá algo sobre um mal-estar repentino, e seguirei de trem para onde as freiras me aguardam.
— Você não pode ir.
— Está tudo acertado. — Por um instante ela me olhou. — Talvez Deus realmente dê um jeito em mim já que me deixou nascer no corpo errado.
— Não tem nada errado com você!
— Todos dizem que sim.
Toquei seu ombro. Havia tanto a ser dito, e eu não conseguia transformar em palavras. Então deixei meus lábios encostarem nos dela e me entreguei, quando ela me puxou para mais perto.
— Meninas?
***
Nos dias seguintes continuamos subindo no tablado. O que mudou foi que minha mãe não nos deixou mais sozinhas, e naquele final de tarde, depois do chá e de agradecer a recepção impecável de minha mãe, Joana saiu dizendo que o motorista a aguardava. Um sorriso, um abraço e um olhar demorado foi o que restou. No dia seguinte seria o casamento.
***
O padre Aurélio havia vindo conversar comigo. Dito palavras lindas de prosperidade e amor. Falou inclusive que o sol havia aparecido como sinal de benção e que os vitrais da igreja estavam totalmente iluminados.
Muitos preparativos e correria, tudo deveria estar perfeito, e eu seguia conforme a valsa. Cada horário foi respeitado, e os últimos conselhos sobre a noite de núpcias chegaram instantes antes de seguirmos para a cerimônia.
No carro só havia espaço para mim e o imenso vestido de noiva. Enquanto seguíamos, eu observava tudo pela janela: as árvores, os pássaros, os animais dos pastos, as flores, o céu e mesmo a terra por onde o carro passava. Tudo era criação de Deus, tudo feito por Ele com amor divino. Todos os seres abençoados pelo Pai, e a única coisa que Ele queria era que amássemos. Acima de tudo amássemos cada uma de suas criações, porque nenhuma foi feita errada ou com defeito. Elas apenas foram feitas, e cabia a cada um de nós agradecer por elas existirem e serem como são.
— Chegamos, senhorita. — Com a ajuda do motorista, desci do carro.
O padre estava certo, o sol refletia, fazendo a igreja estar em seu momento mais belo. Mamãe e papai se aproximaram. Meu pai falava sobre irmos logo, já que o atraso estava além do esperado. Minha mãe, sempre forte e decidida, o corrigia, até que ele apontou dizendo que iria aguardar perto da porta da igreja, que agora estava fechada antecipando nossa entrada.
Despertei quando senti a mão de minha mãe, que segurava a minha, sobre a luva de renda.
— Querida, precisamos ir… — ela tentou me puxar, mas não consegui me mexer.
— Mãe…
— O que foi?
— …tenho que te falar uma coisa — comentei simplesmente.
— Depois você me fala, querida, agora temos que ir. Venha, Isabel.
— Só queria que soubesse que nunca quis decepcioná-la — falei, e ela pareceu não entender.
— Por que está dizendo isso, filha? Precisamos entrar, vamos!
— É um convento — disse, e ela parou virando para me olhar. — Nunca mais a verei, mãe.
— Resolveremos de algum jeito — afirmou ela se aproximando novamente. — Você pode convencer seu marido a trazê-la de volta depois.
Ela insistiu me puxando, mas não consegui sair do lugar. Tudo que pensava era em Joana longe de mim.
— Isabel… filha… isso vai passar, está impressionada, só isso.
— Não estou não, mãe.
— Está sim!
— O que acha que viu quando nos encontrou no quarto? Ou em outras vezes que nos surpreendeu? Por que nunca mais pude ir à casa dela sozinha, mãe? — questionei firme, soltando sua mão, e ela profundamente respirou.
— Justamente por isso, tem que se casar, filha.
— Mãe… ele não a trará de volta, sabe disso tanto quando eu.
— Então, deve se conformar e obedecê-lo, será um ótimo marido, terão filhos lindos, querida!
— Nunca negar o amor… — balbuciei.
Por segundos nenhuma de nós disse nada. Na porta da igreja meu pai nos chamava, o que a fez olhar para ele e acenar indicando que esperasse. Seus passos foram firmes quando ela diminuiu a distância que nos separava, ergui o rosto pronta para ser esbofeteada e em seguida arrastada para a igreja, mas isso não aconteceu.
— Vai sofrer, Isabel. Nunca aceitarão, será malvista e ofendida onde quer que esteja, porque isso não é normal.
Abaixei a cabeça sentindo todo peso do mundo em meus ombros e eu já chorava. Agora sim fui esbofeteada.
— Não te criei para ser fraca — disse ela firme, me encarando. — Agora irei caminhar na direção do seu pai e você tem uma decisão a tomar — interrompeu ela olhando para a porta da igreja e novamente para mim. — Siga seu coração. Ele sempre saberá das coisas, filha.
Ela abraçou-me apertado e me beijou. Quando virou para seguir em direção à porta da igreja, seu olhar era alto e seu caminhar imponente.
***
Na estação, o trem já havia apitado indicando a partida. Eu entrava e saía dos vagões, que estranhamente estavam vazios, e parte do vestido já havia rasgado.
— Onde está… onde está…?
Continuei até que o bilheteiro não permitiu que eu entrasse em qualquer outro vagão. Ainda bati forte em seu peito tentando passar, mas ele afirmava que o trem que eu me referia já havia partido. Esse só estava parado pela manutenção do apito, por isso fora acionado tantas vezes. Me indicou a bilheteria dizendo que o próximo trem sairia em três horas.
O ar faltou, e a cabeça pareceu rodar. Meu pai me encontraria, me arrastaria de volta e minha vida simplesmente acabaria.
Cambaleei e segui pela lateral da estação de trem antiga. Era quase improvável que algum carro passasse por ali, e isso me daria tempo de pensar no que fazer. Andei um pouco e abaixei a cabeça assim que ouvi o som do motor, com sorte o carro seguiria sem me notar. Na mesma rapidez que esse pensamento surgiu, o próximo se formou. Quem não notaria uma noiva caminhando na beira da estrada? E foi isso que aconteceu. O veículo parou.
— Você está horrível.
Ergui a cabeça e me permiti olhar. Era ela. Era Joana com o mesmo veículo que vi semanas atrás. Sorri, mas sorri com a alma por vê-la ali.
— Onde você estava? — Dependurada na porta do carro, ralhei ofegante, sem conseguir parar de sorrir.
Ela deu de ombros. — Fugi do trem para impedir seu casamento, mas quando chegava lá a vi correr e sei lá… — Lindamente ela sorria, e eu, rindo, olhei para o céu azul e formoso que estava sobre nossas cabeças para agradecer.
Não queria nada mais daquilo. Aproveitei que parte do vestido estava rasgado nas costas e forcei o tecido até conseguir arrancá-lo do corpo. Estava livre. Não seria mais o que nunca fui.
— Vai andar por aí só de combinação?
— Sim. Conheço uma modista que fará roupas para mim.
Ela curvou-se abrindo a porta do carro e, sem pensar, embolei o vestido e o joguei o mais longe que pude em meio ao mato.
— E para onde vamos, senhorita? — questionou ela assim que me acomodei no banco.
— Para qualquer lugar em que possamos balançar no lustre juntas.