A saída do elevador dava em um longo corredor repleto de enfeites pendurados sem o cuidado de esconder as etiquetas de loja barata. Qualquer um, por menos atento que fosse, perceberia que os objetos novos substituíam os antigos, dado que contrastavam com a tinta descascada das paredes. Paredes que em nada combinavam com o carpete salmão, repleto de manchas do tempo. Isso se fosse mesmo dessa cor em seus anos de glória.
Da porta aberta, ao final do trajeto, escapava uma luz marcante, inesperada. Talvez porque vim o caminho todo imaginando que estaria trancada, aquilo parecia estranho. Sim, eu sei que é contraditório, já que dei cada passo sem vontade alguma de olhar para trás, torcendo para que Ela estivesse me esperando e eu passasse na entrevista.
Explico.
Esta conversa seria a mais importante da minha vida no momento. A única que poderia resolver tudo de uma única vez. Isso se Ela me aceitasse, claro. Não negava que a dúvida causada por esse pensamento fazia minha apreensão crescer. Eu tinha que conseguir, precisava acabar com aquilo. Para mim, essa conversa com Ela seria sinônimo de tudo ou nada e eu cheguei no fundo do poço, por isso precisava muito do tudo agora.
Curioso como a mente nos pregava peças, como por um segundo enquanto ainda observava a porta aberta, passou pela minha cabeça que minha ineficiência se estenderia até aqui e Ela talvez não estivesse lá dentro, que eu seria recebida por uma subalterna que diria que não havia chance para mim, independente de quão qualificada para isso me tornei nos últimos meses.
Lembrei-me de minha mãe ao me aproximar do marco de madeira desbotada. Sua voz ecoando cenas da minha infância me fez esticar o braço e bater antes de enfiar a cabeça para dentro. Era a educação falando mais alto que o desejo de entrar. O que, dada a ausência de resposta, não demorei a fazer.
Lugar esquisito.
Sinceramente, eu esperava outra coisa quando meus olhos puderam correr de um lado a outro da antessala. Não era assustadora como tantas pessoas me disseram que seria. Ok, talvez um pouco intimidadora, mas só. Quisera eu ter lembrado de carregar meu caderninho na bolsa, ainda que fosse para esboçar em um desenho sem muito critério o momento. Meu momento.
Perdida em pensamentos, demorei a notar que Ela estava parada me esperando, recostada em um dos muitos janelões que formavam o contorno da sala. Quase como se cada um pudesse me mostrar paisagens lá fora, incrivelmente diferentes. Seria uma alucinação? Algo relacionado aos remédios? Esperava que não, porque era simplesmente lindo. Um mar revolto, um penhasco ao entardecer, o alto de uma ponte onde o vento certamente embaralharia meu cabelo, uma estrada com neblina, a linha de trem vista pelo ângulo de quem está deitado nela, uma banheira linda, ornamentada, onde a água caía para fora encharcando o tapete macio e, claro, uma linda tromba d’água se formando no céu distante. Será que fazia parte de alguma propaganda? Nem sei, mas poderia. Precisamente deixava o desejo de ser aceita muito mais intenso. Tanto o era que, quando dei por mim, estava com a mão parada no ar entre uma batida e outra sem desviar os olhos dos janelões. Eu escolheria qualquer um deles agora mesmo.
— Por favor, sente-se — anunciou Ela, reparando que eu estava ali. Sua mão apontou para a única poltrona de visita do ambiente. — Fique à vontade, querida.
Sem graça, respondi que sim com a cabeça. Eu sabia que seus olhos não perderiam meus gestos de agora em diante. Sabia também que tudo o que eu fizesse ou dissesse seria analisado. Na verdade, foi por isso que balancei a cabeça, para espantar as imagens de insegurança que começaram a surgir. Nada de me ver enjaulada e enfurecida, chacoalhando as barras da minha própria prisão.
Ser admitida era minha única opção.
Receosa em deixar transparecer minha condição, escondi a mão debaixo da mochila, tão logo sentei, para que Ela não conseguisse ver minhas unhas roídas a ponto de sangrar. Tudo contava e eu sabia disso. Não à toa, evitei encarar o estilete deixado aberto sobre a mesa dela. Ainda bem que antes de sair, mesmo com tempo ameno, lembrei-me de vestir uma blusinha de manga longa. As marcas do último episódio ainda riscavam meus braços.
Cansava muito ser incompreendida.
Para minha sorte, o requisito da vaga dizia “seja você”. Ok, isso tinha tudo a ver com a especialidade do lugar. Essa oportunidade era tudo o que eu precisava, com ela poderia colocar um fim em tudo que diziam e as coisas iriam melhorar. Era minha esperança.
— Pronta para a entrevista?
Mordi os lábios a vendo se acomodar ruidosamente na cadeira enquanto ajeitava os óculos pequenos sobre o nariz. Ela era bem diferente do que imaginei, confesso. Embora as lentes de leitura não combinassem com a imagem que me foi descrita, eu até gostei, dando o ar acolhedor, menos sombrio, que promoviam.
— Gostaria de falar algo antes que eu comece? — perguntou ela, solícita.
— Preciso muito da vaga — deixei escapar já me culpando por demostrar minha ansiedade logo de cara.
Minhas palavras, no entanto, a fizeram sorrir. Não sarcasticamente, como era de se esperar de alguém naquela posição, mas de uma maneira terna. Uma maneira que a fez parecer ainda mais acalentadora.
— Não há do que se envergonhar, querida. Todos os que eu entrevisto dizem coisas parecidas. Logo, preciso que seja mais específica…
Enrijeci.
— Não tenha medo — continuou ela no mesmo tom. — Sei que esse é um momento importante. Por isso mesmo, use o tempo que precisar.
Inesperado. Mas, bom.
Respirei fundo ainda em silêncio. De uma forma estranha eu me sentia bem, apesar da ansiedade. Não precisaria repousar as mãos em um gesto polido ou colocar no rosto algum sorriso que não era meu. E isso deixaria tudo mais fácil. “Apenas eu”, afirmei mentalmente antes de começar.
— É complicado explicar, mas têm as pessoas… — pausei para trás, na direção de onde vim. — Eu não quero decepcionar mais ninguém.
Notando que falar estava difícil para mim, Ela se movimentou na cadeira e me olhou por cima dos óculos. Sobre sua mesa já estava minha ficha. Estranho, quando foi parar ali? Não me lembro de tê-la visto quando entrei. Tampouco de ela ter pego algo no arquivo do outro lado da sala.
Deixa para lá.
Pouco depois, já estava aberta em uma página com uma foto minha. Uma em que eu sorria parecendo feliz, e isso me fez pensar que aquela imagem não combinava com o perfil da vaga. Por que tinha que ser logo essa? Havia outras tão melhores. Sozinhas, diziam muito mais sobre mim e a fase que estava vivendo.
— Quanto tempo tem? — questionou ela apontando meu rosto feliz, risonho demais.
Ia responder de bate e pronto, mas não o fiz. Não conseguia lembrar. Talvez pelo fato de Ela estar atenta a cada gesto meu, como se desejasse, ou mesmo pudesse, saber se eu tentaria mentir.
— Não me recordo — fui sincera. — Mas sei que faz tempo.
— Ok. — Ela mudou de posição na cadeira. — Você entende que todos os entrevistados precisam se submeter aos mesmos critérios, não é?
— Sim.
— E que na maioria das vezes não estão confortáveis em encarar o próprio passado?
— Imagino — respondi, pensando que “óbvio” seria uma resposta melhor.
Silêncio. Seu olhar fazia parecer que tinha lido meu pensamento.
— Então quer dizer que passou por todas as etapas?
— Sim — afirmei em plena certeza, segura o bastante para me sentar mais ereta na cadeira, olhando-a diretamente. — É por isso que vim. Sei que estou mais que qualificada para fazer isso no momento.
— Gostei. — Soltou a caneta e encostou na cadeira, fazendo-a gemer mais uma vez com o peso. — É importante ter certeza se quer conseguir de verdade. Ainda mais porque, após a aprovação, não tem como voltar atrás. A propósito, você está ciente disso, não está? Você ficaria surpresa se eu te contasse quantas pessoas não leem as letras miúdas do contrato…
— Estou, sim senhora — devolvi sem pensar. — Não quero que me interprete mal, mas é justamente isso que procuro, não ter que…
— Sei, sei… decepcionar as pessoas e tal — completou ela, abanando a mão.
— Sim. Estou cansada de como me olham, de como acham que tudo é fácil e simples, que basta querer e “puf”, está pronto, resolvido.
— É por isso que se candidatou à vaga? Não quer mesmo tentar de novo? — perguntou ela de volta às páginas da minha ficha. — Seu perfil parece adequado, mas vejo que ainda cabe alguma coisa…
— Essa pergunta é um teste? — espantei. Justamente por ser a mesma que todos faziam, até nas redes sociais. Uma pergunta que fazia com que pessoas como eu se sentissem ainda piores, incapazes. Devia ser mesmo. — …um teste?
— Não, querida, quero só saber o porquê de alguém com esse sorriso ter vindo até aqui falar comigo. — Apontou a foto.
— Porque só você pode resolver meu problema. Porque estou cansada, exausta! Porque não consigo mudar nada em minha vida! Essa é a solução, minha única chance de resolver tudo. Será fácil, porque estou empenhada nisso. Decidida, entende?…
— O que acontecerá com o Slep? — interrompeu ela no mesmo tom.
Não respondi de primeira.
Franzi a testa, correndo os olhos dela para a ficha sobre a mesa. Será que ali tinha tudo a meu respeito? Como ela sabia do meu gato?
— Ficará bem.
— Triste e solitário — corrigiu ela antes de acrescentar, ainda lendo a folha. — Duas pessoas na família com alergia. Acha que ele vai continuar naquela casa quando não estiver por lá? Está anotado aqui que você mora perto de uma avenida movimentada. É isso mesmo?
— Não fariam nada com ele. Sabem que o amo. Não o soltariam para que morresse atropelado só porque eu não estarei por lá o tempo todo.
— Veja, se você não está se preocupando agora, por que eles se preocupariam depois?
— Desculpe — tentei conter minha inquietação —, mas não sei o que isso tem a ver com eu conseguir essa oportunidade! Não deveria ser algo simples, já que sou qualificada? Veja nos meus últimos meses e encontrará todas as características descritas.
— Sim e não, querida. Sei que deseja parecer pronta e decidida, mas está esquecendo da parte da interação social.
— Ah sim, conversas e tal… Se for isso, tentei e não deu certo! Dizia no anúncio que as tentativas seriam levadas em consideração e que não seria um problema falhar.
— Não. Realmente não é, contanto que a tentativa seja real.
— Talvez não tenha me feito entender quando entrei em contato para marcar a entrevista, mas nada funcionou nessa parte, então me reservo o direito de pedir que não seja levada em consideração minha inabilidade nesse quesito.
— Sabe que quando marcamos a entrevista passamos a acompanhar de perto nossos candidatos.
— Sei, sim. Mais um motivo para estarem cientes do quão certa estou.
— E o rapaz do pet shop que sempre puxava assunto ao entregar a ração e a areia do Slep?
— Ele só fazia isso pra ser gentil. Alguma política da loja, essas coisas.
— Como pode saber que a gentileza não era com você? Como…
— Veja, entendo o que está tentando fazer. — Quis, ao menos, não prolongar aquela ladainha, já a conhecia de cor. — Porém, qualificar essa oportunidade é a única coisa que pode resolver tudo para mim agora e, se olhar direito, bem mais do que pedem está por aí na ficha. — Apontei os papéis que há pouco ela folheava.
— Não funciona assim, querida — disse ela, largando-se na cadeira, que voltou a gemer com o peso. — Fico feliz em dizer que vou indeferir seu pedido por enquanto. Te dou mais um tempo.
Perdi a fala acompanhando seus gestos. Feliz? Mais tempo? De forma automática ela abriu a gaveta da mesa, retirou de lá um carimbo e depois de apertá-lo na esponjinha de tinta o bateu firme na folha com meu nome.
— Você poderá se candidatar de novo após preencher o requisito em letra miúda.
“Não aceita”, era o que estava no carimbo fraco, borrado, sobre a minha ficha. Palavras que, tão logo li, me fizeram explodir.
— Eu tentei! — Levantei irritada, espalmando as mãos sobre a mesa. — Teve a mulher que passa roupa lá em casa… Deve estar em algum lugar nesses papéis! — Apontei as folhas abaixo do clip que prendia minha foto sorridente. Maldita foto!
— Pedir licença para pegar algo, dar bom dia e boa tarde não são aquilo que entendo como tentativa, querida.
— E aquela outra… — Chacoalhei as mãos tentando não ficar ainda mais nervosa, porque quando isso acontecia não conseguia me expressar direito. — Aquela da associação do bairro… eu liguei. Falei, falei e falei, dei várias ideias e até me ofereci como voluntária, então ela me chamou por outro nome! Como uma pessoa vai se conectar com outra, se essa nem se esforçou para guardar o seu nome?
— Tudo bem, a mulher pisou na bola, não vou contestar. Então… — digo afoga
— Está vendo? — Estiquei a mão, apontando para ela. — Sei que é atarefada, pois leio sobre seu negócio todos os dias na internet, e não quero tomar mais do seu tempo noutra entrevista. Será que não pode reconsiderar? Só preciso que me aceite e pronto. Tudo se resolve, para mim e para você.
— Não dessa forma. Regras são regras. Você precisa cumprir a cláusula escrita em letras pequenas.
Ela respirou fundo, bem fundo, e eu também.
— Se conecte com as dores de outras pessoas, pode ser apenas com uma, querida, e depois pode voltar.
— Mas…
— Estarei sempre aqui ao seu dispor, você é jovem ainda. — concluiu ela, ignorando meu apelo.
Em seguida, quando levantou e afastou da cadeira, apontando para a porta, quase não acreditei. Nem isso eu havia conseguido. Essa manhã poderia jurar que seria a minha vez. Tudo se resolveria e os problemas não existiriam mais. Como eu voltaria e olharia todos nos olhos? Seria uma decepção novamente.
Sem alternativa, me levantei, limpando a maquiagem borrada pelas lágrimas que não consegui segurar. Estranho como me prestei a me maquiar para a entrevista, certa que conseguiria. Minha educação dizia que agora eu deveria sorrir e agradecer, mesmo rejeitada. Algo que nem cheguei a fazer antes que ela falasse comigo novamente.
— Pegue. Leve com você.
Segurei a foto e meu sorriso estava ali, sorrindo para mim.
— Ainda a vejo aí em algum lugar — disse ela olhando a foto e depois diretamente para mim. Ato que, na minha percepção, pareceu durar muitos segundos.
Um sorriso terno, alguns tapinhas nas minhas costas, e ela apontou a porta novamente. Havia nela um quê de acolhedora, apesar dos pesares e do que todos diziam.
— Achei que teria medo de você — comentei sem pensar.
— Não há por que, querida. Só quem não me conhece poderia pensar algo assim. Nem sempre a imagem que temos das coisas corresponde à realidade.
— Acho que… obrigada.
— Disponha. Ah, antes que eu me esqueça: caso tenha interesse, o departamento aqui ao lado também está com uma vaga. Se tiver disposição… digo porque lá precisa mesmo estar disposta… bem, posso recomendá-la.
Olhei para a lateral, onde havia uma parede além dos janelões com paisagens diferentes e, ainda parada, me peguei a imaginar qual seria a área do departamento ao lado, ou mesmo que tipo de vaga teriam que serviria para uma pessoa como eu.
— Posso ir direto daqui? — sugeri antes de sair.
— Infelizmente não. O expediente deles termina mais cedo. Agora, caso queira ir adiantando as coisas, por que não tenta se conectar com alguém, como te falei? Será importante para o seu perfil em qualquer um dos lugares.
— Ok.
Saí da sala sem vontade de olhar para trás.
Pouco depois, já de volta ao corredor com carpete salmão, não consegui evitar olhar para a porta fechada do departamento ao lado onde havia a tal oportunidade e quase não acreditei quando li o nome do lugar. Só podia ser brincadeira. Como Ela pôde sugerir isso? Até aqui, rejeitada.
***
Não era minha intenção demorar muito a resolver as coisas, por isso, assim que possível coloquei os pés na rua à procura da tal conexão. Se para ser aceita e resolver meus problemas eu precisava socializar, então OK. Faria isso. Era só escolher alguém, puxar assunto e, com algumas frases feitas, tudo estaria resolvido. Amanhã mesmo eu já poderia voltar.
Algumas quadras depois me deparei com um ponto de ônibus. Estava perto do fim do expediente e, com certeza, passariam muitas pessoas por ali. Sentei no banco e esperei. Passou mais de uma hora e ninguém falou comigo. Cheguei a me questionar se caso eu não falasse com ninguém, dado que nenhuma pessoa se prontificou a dar continuidade às conversas que iniciei, seria válido como uma tentativa.
O tempo começou a fechar outra vez. Perfeito! Exatamente a minha cara! Se seca e com o sorriso de plástico no rosto não havia uma viva alma disposta a falar comigo, encharcada então, não seria melhor.
Enfim, não me restava alternativa.
Algum tempo depois, contudo, algo inesperado aconteceu. Encolhida no ponto de ônibus com cobertura gotejando para todo lado, assustei quando um menino parou na minha frente falando atrapalhado, com uma insistência que não acabava.
— Minha tia! Minha tia! — Ergui os olhos buscando a direção e me deparei com uma mulher do outro lado da rua. Ela escorria a água empoçada sobre uma barraca de lona precária.
— Sua tia? — confirmei.
— Sim. Ela disse pra você se esconder da chuva lá… Vem!
Mal terminou a frase e o menino atravessou de volta a avenida, que nessa altura mais parecia um rio. Apressada, o segui até entrarmos embaixo do plástico que cobria a barraquinha improvisada. Nela, sobre uma mesa velha de bar, daquele tipo metálico de abrir, havia garrafas térmicas e potes com bolos. Sem dizer uma única palavra, a mulher pegou copos descartáveis e serviu café pelando. Demorei um instante até entender que um era para mim. Em uma situação normal eu não aceitaria, mas ao sentir o cheiro do café, a fumacinha subindo e tudo combinado à chuva, não pude resistir.
Assoprei antes de bebericar e provei um pouco. Que delícia! Até fechei os olhos apreciando o primeiro gole. Desta vez, não foi só por educação que virei para agradecer. A mulher sorriu de volta, disse um “que isso, minha filha” e se serviu de mais um gole. Ficamos as duas, uma do lado da outra, assoprando o café enquanto os carros buzinavam travados no aguaceiro.
***
Não sei precisar, mas acho que fiquei naquela barraca por mais de três horas, dado que já estava de noite e eu não tinha relógio. Há muito tempo não via a hora correr tão rápido. Ficamos ali, as duas, sem precisar dizer nada que fizesse sentido. Eu até me arrisquei a ajudar a mulher e servi alguns cafés com bolo para as pessoas molhadas que chegavam no ponto. Ao menos a tarde dela foi lucrativa.
Mais tarde, quando voltava para casa, deixei a mente fluir com o balanço do ônibus. De início olhando as luzes da cidade, depois pensando naquela tia e seu sobrinho, desejei ter podido conversar mais daquela conversa sem sentido e, por fim, pensei na vaga do departamento ao lado que Ela havia me oferecido. E teria ficado assim se não fosse o que veio depois.
Enquanto o ônibus parava no ponto na esquina de casa, avistei uma mulher aguardando sentada no banco. De início, descendo os degraus do ônibus não reparei, mas logo depois, quando ela sorriu para mim, tive certeza. Era Ela, minha entrevistadora, a que havia me dispensado mais cedo. Sentei ao seu lado no banco e fui me dando conta que se Ela estava ali significava que agora era comigo. Conseguiria o que queria ou seguiria tentando.
Foi estranho, mas quando a olhei sem jeito, Ela tranquilamente sorriu dizendo que tudo bem, me indicaria para a vaga no departamento ao lado. Acenou movendo a cabeça como quem compreendia e aceitava me perder. Nenhuma das duas disse nada quando nos levantamos, mas dessa vez cada uma seguiu para um lado diferente. De uma forma esquisita eu sentia que ia demorar um tempo para nos reencontrarmos e isso… estava bom para mim.
***
Abri a porta de casa usando o ombro. Feita de madeira, ela sempre agarrava em dias de muita chuva. Mal eu tinha tirado os sapatos e Slep, que não ligava por eu estar encharcada, veio me receber. Demoradamente o apertei contra meu peito e, em retribuição, ele miou, olhando diretamente para mim. Eu sabia que ele sabia. Gatos sempre sabem, por isso o afaguei, deixando claro que tudo bem, havia mudado de ideia.
— Vem Slep… — eu o chamei, seguindo para o quarto.
Foi como eu disse, encarar a Morte de frente não deu medo. Percebi isso quando Ela me entrevistou mais cedo e também agora há pouco quando aceitou eu ter mudado de ideia. O que dá medo é encarar pessoas que não me enxergavam, não fazem ideia do quanto está doendo dentro de mim e ainda assim querem que eu fique mesmo sendo incapazes de fazer qualquer conexão. Isso sim dá medo.
A cada 40 minutos uma pessoa se suicida no Brasil. Nunca dá para
saber quando a conexão será feita por você. Ajude de verdade.
Procure enxergar em vez de apenas julgar.