Era uma família muito tradicional e como tal os havia separado, não seria descente se fossem vistos juntos. Ela era filha do segundo marido da tia dele. Quase primos, diziam. Cresceram juntos. Brincaram juntos. Brigaram muito.
Primeiro, quando ela arrumou um namoradinho e ele, sem pensar, cercou o garoto no colégio e deu uma surra no coitado.
Depois foi ela que o surpreendeu beijando outra e, com dedo em riste, tirou satisfações com a menina que não fazia ideia do que acontecia.
Meses à frente, se encontraram em uma festa entre amigos. Ela, com sinais visíveis de embriaguez, foi levada por ele, mas no caminho de casa foram interceptados pelo garoto que havia apanhado no colégio, que naquele momento estava cercado de amigos. Foi a vez do rapaz apanhar, mas no fim ele até gostou, porque ela fez um bom trabalho quando cuidou de seus machucados lhe dando beijinhos.
Dois anos à frente, no curso de inglês, disputavam conhecimento, os colegas riam, se divertiam, mas o professor recém-contratado insistia em deixá-los bem separados. Sempre cada um de um lado da sala. Três meses depois, o rapaz entregou na diretoria uma gravação de celular que mostrava o professor novinho dando em cima dela. O tal professor foi dispensado e ela, meninota se achando o máximo por ser cortejada por um cara mais velho, odiou o rapaz por isso.
Anos à frente, em uma noite de véspera do ano novo, quando ele apareceu com uma namorada, foi a vez de ela seguir a menina até o banheiro, onde rasgou o vestido da garota em plena festa de confraternização de família. Foi sem querer! Disse e jurou enquanto a menina chorava segurando a alça desmantelada do vestido.
Sua madrasta intrometida encontrou uma tesoura e cortou com delicadeza a alça do outro lado. Com linha e agulha apertou um pouco mais nas costas e transformou o vestido de menina num vestido mais justo que apertava os seios e os faziam parecer maiores.
Ela não ficou no toalete para ver o resultado. Do lado de fora discutia com ele, acusando-o, mas tudo parou quando o rapaz viu a namorada saindo do banheiro e, apesar do nariz vermelho pelo choro, tentava um sorriso dando de ombros, na esperança que ele gostasse do seu novo traje. E ele adorou ver os seios, antes pequenos e sem graça do vestidinho de alça, estarem agora quase saltando para fora.
Descontrolada, ela ainda o segurou pelo braço, mas ele sorriu tímido, a abraçou e sussurrou em seu ouvido: “seu pai proibiu que você fosse minha, o que quer que eu faça?”, um beijo no rosto o qual ela esfregou sem esconder a raiva e o nojo e, por fim, um soco no braço dele que, com certeza, doeu mais na mão dela.
Meses que não se viram. Ela se recusava a ir aos almoços de família aos domingos. Cansou de ser sempre obrigada a conhecer uma nova namorada dele, já bastava ter que ver isso nas fotos do grupo da família. Sempre uma diferente, de todas as etnias e silhuetas.
Agora se viam somente nas grandes festividades e sempre no Natal, família grande toda reunida e com direito a amigo secreto. Por cinco anos seguidos ele a tirou. Quem podia imaginar o quanto ele pagava para ter o nome dela em seu papel? A entrega dos presentes sempre era tenso, mas no fundo o coração dela saltava assim que ele anunciava que a havia tirado. O abraço durava os segundos permitidos pela família, mas a troca de olhares dizia que essa era a única noite do ano que o pai dela e os pais dele estariam bêbados demais para reparar onde eles estariam e foi assim até o ano que ele foi surpreendido pela aparição da namorada que quis fazer surpresa e chegou na hora da entrega de presentes do amigo secreto. O abraço foi substituído por um aperto de mão e um enfrentamento no olhar que durou muito mais do que qualquer um ali poderia compreender.
Então, ao lado da madrasta, ao pular a sétima onda no ano novo, ela sabia o que precisava fazer e no ano seguinte aceitou um namoro, quis apresentá-lo à família. Esfregaria na cara do rapaz que também era amada e desejada. Muito desejada. Entre tantos, escolheu o que a venerava. O mais obcecado por ela.
Super produção de sua parte e da parte do namorado que foi obrigado a trocar de roupa três vezes até que ela decidisse qual havia ficado melhor. Chegou pomposa e com sorriso nervoso no almoço de domingo. As mãos suavam e convenceu o namorado que era porque a família estava ansiosa para conhecê-lo e que a avó, apesar de ser emprestada, estava muito debilitada e ficaria radiante também.
Todos adoraram o namorado, mais ainda quando descobriram que ele havia prestado Enem com chances reais de pontuação para medicina em uma boa universidade, mas quem ela queria que o visse e ouvisse quão bom o cara era, não estava ali, pensou em perguntar, imaginou mil maneiras de vasculhar onde afinal o desgraçado do rapaz se enfiara. Tinha certeza que havia anunciado nas redes sociais e no grupo da família que apresentaria alguém, lembrava-se de ter usado hashtags e uma delas era: #esseepracasar. Apostou sozinha que a ausência dele era porque o filho da mãe devia estar com outra, uma que provavelmente ela ainda não tivera o desprazer de conhecer.
Já estavam na sobremesa quando um estrondo veio lá de fora. O som da moto parando, o portão aberto com brutalidade e uma discussão crescente que parecia dar oportunidade de comunicação até para o cachorro, que não parava de latir. Segurando no ar a colher, ouvia a alteração, as pessoas saíram e tentaram acalmá-lo, mas foi em vão. O namorado que fora conhecer a família não entendia de quem o rapaz enlouquecido falava e porque acusava todos que eles nunca os deram a chance de tentar. Nos separaram! O rapaz gritava lá de fora. Não tinham esse direito! Ele berrava. Agora ela vai casar com outro... Insistia. Eu sou louco por ela… sempre fui. Falava e repetia.
Com o coração célere, ela levantou e, com força, jogou o guardanapo à mesa o sujando com o creme do pudim que há pouco parecia delicioso. Pediu licença e seguiu apressada, precisava ter certeza se era dela que ele falava. E se ele resolveu lutar, ela também o faria, mas ao quase alcançar a porta, a mãe do rapaz a brecou. Fique longe dele! Pediu a senhora que há muito chamava de tia. Não faça mais mal a meu filho! Exigiu, mas ela se recusou a ouvir. Tentou passar por um dos lados, mas a mulher não deixou. Retornou, tentando seguir pelo outro, mas ela impediu.
— Por favor… — suplicou, mas, irredutível, a mulher não se mexeu.
O rapaz lá fora foi contido, e alguém tentava levá-lo embora. Convenceram-no que a casa da avó não era local de escândalos, ainda mais a velhinha estando moribunda, talvez participando do último almoço em família. Ela o ouviu descer as escadas, mas o som de quem ia e retornava a dava esperança. Porque todas as vezes que voltava ele perguntava se ela estava ali. Precisava falar com ela, dizer para não se casar, ele pediu e repetiu, mas ainda assim o convenceram a sair. O portão ruidoso foi fechado, o som da moto sendo ligada a fez empurrar a tia, mas seu pai no corredor a segurou, mesmo ela gritando o nome do rapaz, pedindo para ele voltar. Aos pouco as pessoas foram entrando e ela arrastada para dentro, o cachorro nervoso foi parando de latir assim que o som da moto foi diminuindo, indicando que ele já seguia, virando a segunda esquina.
Na mesa, o namorado apresentado seguia elogiando a sobremesa enquanto a avó sentada na cadeira de rodas murchava a boca como quem estava prestes a chorar. Ela não se conteve, passou pela enfermeira que já fazia alguns procedimentos, abraçou a senhorinha e chorou. Deu-lhe um beijo na fronte e a ouviu com muita dificuldade dizer: Vá!
— Vozinha… — balbuciou a menina num sorriso tristonho para a senhora que talvez estivesse partindo.
— A vida é sua, menina. — insistiu a velhinha por um fio de voz, mas ela sabia que nunca a deixariam falar com ele. Sempre estavam de olho. Foram tolos quando, novinhos, transaram na despensa em uma noite de festa naquela mesma casa. Não se lembraram de trancar a porta. Quando os surpreenderam, não quiseram saber se havia amor entre eles. Jovens demais! Lembrava-se de alguém ter dito. Aproveitador, ela só tem 14 anos! Lembrava-se do pai berrar muitas vezes, esquecendo-se de que ele só tinha 15.
O almoço terminou sem a vozinha. Foi levada para o quarto. Mas a menina descobriu que o futuro médico logo teria que tratar o colesterol, pois repetiu o pudim com creme cinco vezes. Naquela mesma noite o namoro e o futuro casamento tiveram fim, confessou que amava outro e que iria atrás dele mesmo quando o quase médico disse não ter gostado nada, nadinha daquela conversa. Semanas depois, um telefonema no meio da noite abalou toda a família.
Era outono e no cemitério o friozinho pairava. Parentes, vizinhos e amigos estavam presentes. Ela elegantemente vestida, mas, como as tias, não tirou os óculos escuros. Não quis que a vissem com olhos inchados. Nem mesmo o casaquinho ela tirou, odiava o tom arroxeado que aquele tempo deixava em sua pele.
Estavam todos ali, era só olhar em volta e qualquer um notaria isso, ainda não havia conseguido entrar na sala funerária, definitivamente a movimentação era grande e mesmo ali fora ela começava a reconhecer que estava ficando abafado e o cheiro forte das coroas de flores que não paravam de chegar a estava enjoando. Olhou o relógio no fundo da sala bem acima do grande símbolo religioso com arco dourado e no centro uma cruz. Precisava de ar. Faltavam horas até que tudo aquilo acabasse.
Afastou-se de mansinho percebendo que ninguém a notara, primeiro, longe do círculo próximo de familiares, em seguida para fora do velório, depois para perto da lojinha de flores de onde vieram as coroas e, por fim, para dentro do cemitério. Várias vezes olhou para trás, imaginando que logo alguém chegaria querendo saber onde afinal ela havia se enfiado. Mas não chegaram. Todos estavam tão abalados pela perda que a família sofrera que se esqueceram dela.
Sentou-se num banco de cimento dentro do cemitério, a árvore chorosa fazia sombra balançando as folhagens sempre que o vento soprava. À sua frente um jazigo aberto com o sobrenome da família de sua madrasta parecia uma capela. Uma muito bonita e muito bem cuidada, própria de pessoas com dinheiro. O vento chacoalhou as folhas mais uma vez, logo mais a chuva chegaria. Sabia, pois o cemitério tinha vista privilegiada àqueles que moravam ali. Em algum momento seria ela.
Levantou-se e entrou na pequena capela que por anos guardaria os restos mortais de mais membros da família, talvez tivessem lavado o lugar, pois o granito do piso estava impecável e tudo muito limpo, passou os dedos pelos nomes gravados e demoradamente viu a foto de cada um que havia partido da família que acolheu ela e seu pai há anos. Alguns ela não havia conhecido, mas os respeitava.
Virou-se quando ouviu um barulho e, estática, não conseguiu piscar. Ofegante, o rapaz que estava na porta a olhava com ar espantado, mas tudo que ela conseguiu fazer foi se aproximar e se jogar em seus braços em um abraço que fora proibido por tempo demais.
Ela o sentiu retribuir e dizer que apesar de tudo estava feliz em revê-la e assim ficaram por longo tempo. Um entregue ao outro. Quando a soltou, o sorriso destampava-lhe o rosto e não imaginavam, mas juntos questionaram.
— Quanto tempo temos? — riram e depois, abraçados, choraram. A morte precisou caminhar por entre a família para que eles pudessem estar juntos.
— Desculpe — ele disse falando algo sobre o bebê, mas ela o brecou dizendo que nunca houve um bebê. Ela não engravidara. — Mas todos disseram… — insistiu o rapaz.
Ela apenas continuou a negar, balançando negativamente a cabeça. A família gostava de aumentar. O caso foi que mesmo tendo jurado que não, o pai achou que ela, morrendo de cólica e com sangue na roupa, havia perdido um bebê.
— Seu pai, ele… — comentou franzindo a testa — …ele fez toda família achar que eu a havia violentado.
— É, eu sei — comentou, lamentando por todo o inconveniente. — Éramos novos demais e foram tantas vezes nos arriscando que se não fosse naquela noite teria sido outra qualquer.
O assunto acabou e o vento forte voltou a soprar. A árvore chorosa balançava as folhagens produzindo um som rítmico e constante. Iria mesmo chover. Quem sabe resolvessem adiantar o sepultamento?
Depois de beijá-lo afetuosamente, ela seguiu em direção à saída e nos primeiros pingos correu, pensando que o correto seria voltar para o velório, mas ele a alcançou e uniu sua mão na dela, a conduzindo para outro lugar. Quem seria capaz de garantir que haveria outra oportunidade para eles?
Esperaram muito tempo até que a chuva fosse apenas uma garoa forte e ela pudesse seguir antes que ele. Não importava como se sentiam, não deveriam ser vistos juntos, ouviam essa frase por toda a vida. Ela entrou antes e encostou perto da madrasta, que copiosamente chorava. Teve pena da mulher e entendeu porque ninguém sentiu falta dela. As pessoas pareciam inconformadas, agora até repórter tinha e passava de um a outro fazendo entrevistas. Algo sairia no jornal no dia seguinte.
Viu o rapaz entrar e, como ele, tentou esconder o sorriso, disfarçando caso alguém estivesse atento. Sugeriram que a madrasta entrasse na sala e se despedisse, talvez tenham dito o mesmo a ela. Não se lembrava. Nesses momentos todos usavam frases feitas.
Odiando ter que fazer isso, ajeitou os óculos e entrou no ambiente apertado onde muitos queriam dar o último adeus. O caixão com rosas brancas foi um estranhamento a ela, se pudesse opinar teria recomendado algo mais colorido. Lírios rosa ou amarelos, talvez, mas uma decisão como esta, quem perguntaria a ela? Esticou os olhos para o vão ao lado. Flores brancas também. Azuis seriam mais belas, mas quem era ela para se meter no funeral dos outros? Melhor deixar para lá.
Passou a mão na alça onde logo alguém seguraria para conduzir o caixão até o jazigo com ar de capela. Sentiu o metal frio e um vento gelado soprar trazendo mais uma vez o cheiro de flores espalhadas por todo o lugar. Viu o rapaz entrar e agora, sem conseguir evitar, acompanhou seus passos até que estivessem cada um de um lado, direta e longamente se olharam. Ficou evidente que todos naquele cubículo sentiram a tensão, a energia entre eles era forte demais. Alguns não aguentaram e saíram do lugar. Quem, em um momento como aquele, seria capaz de os recriminar?
Esperando que tudo acabasse, ela sentou em um canto e aguardou, ouviu a missa e seguiu junto ao cortejo ao lado do pai. A chuva havia parado, mas o ar ainda permanecia gelado. Demoraram a sair de perto do jazigo com ar de capela. Sua madrasta relutou sem conseguir deixar o lugar. Quis dizer que não adiantava ficarem ali. Todos tinham que seguir com suas vidas, mas, em respeito, se calou e aguardou a mulher se controlar.
Em passos lentos avançaram em direção ao portão de ferro estranhamente ornamentado, ironicamente uma criança o usava de balanço e o vai e vem fazia o metal ranger confundindo as mentes entre o sombrio e a ternura do gargalhar da criança. Afagou a madrasta, beijou o rosto do pai e, com tristeza, os viu deixá-la para trás.
Agarrada às barras frias do portão ornamentado continuou a olhar enquanto eles seguiam, partiam e a deixavam lá. A vida tinha que continuar. Suspirou profundamente, mas então sentiu a mão fria do rapaz que com ternura entrelaçou a sua. Sorriu triste e ele também. Quem poderia imaginar, mas o cara louco por pudim, aquele com notas boas do Enem, uma noite os viu juntos e não conseguiu aceitar.