Cássio já não reclamava mais, acostumara-se a levantar de madrugada todas as quintas-feiras para ir visitar a mãe. Atravessava a cidade ao lado da avó. Sentia mais medo dela do que de andar pelos corredores do hospital onde sua mãe estava. Desde que começou a viver com a mãe de sua mãe, uma senhora avançada em idade e com comportamento estranhamente perturbador, o garoto parecia sempre atento ao que podia emergir de repente.
— Hospício — balbuciou sozinho enquanto terminava de se trocar. Puxou de leve a cortina só para confirmar que lá fora o dia chuvoso mal clareou e, no guarda-roupa, apanhou o casaco e procurou pelo quarto o guarda-chuva quebrado.
Ele não entendia por que a mãe estava naquele lugar, mas disseram que ela teve uma crise de “nervos” e um parafuso de sua cabeça soltou. O menino não concordava. No auge de seus dez anos era bem mais esperto do que todos imaginavam. E percebia facilmente as coisas acontecendo à sua volta. Sabia que sua mãe usava drogas. E que isso trouxe efeitos terríveis que a tiraram do plano real e a faziam viajar por um mundo imaginário. Foi ele quem mostrou onde tudo estava quando a assistente social apareceu. Se soubesse que a levariam para tão longe dele e que precisaria morar com a avó, nunca teria contado. Ninguém entendia sua mãe. Ela só desejava ter suas asas de volta. Contou isso a Cássio inúmeras vezes. Ela dizia que só assim conseguiria fugir do anjo mau e sombrio que a perseguia com ruídos assustadores. Insistia na história até mesmo quando não usava aquele pó branco.
— Asas… — resmungou Cássio, balançando negativamente a cabeça; por fim deu um laço duplo firme no tênis, colocou a jaqueta e só então reparou no irmão.
— Não adianta levantar, Salvador, vovó disse que você não tem idade pra ir às visitas, e a vizinha vai ficar de olho em você. Se comporte! Além disso — disse estufando o peito enquanto ruidosamente fechava a jaqueta —, você é medroso demais pra entrar naquele lugar de loucos.
— Não sou! — Mesmo de pijama e meias, as que o faziam escorregar, o irmão mais novo corria e tentava descontar a provocação com socos e pontapés. Foi em vão. Quatro anos de diferença davam a Cássio uma grande vantagem.
— Ela nunca mais vai sair de lá? — O menino pareceu confuso. — Vamos morar com a vovó pra sempre? E se o médico disser que o parafuso não vai voltar para o lugar, ela vai morrer? — questionou de maneira atropelada ao irmão mais velho.
— Mamãe não ficou doida, tá bom?! — Um chacoalhão e Cássio continuou encarando o pequeno. — Não repita mais isso. Nunca mais!
— Mas ela foi para aquele lugar… e você disse que é lugar de louco…
— Eu sei!
— Você sente medo de lá, Cássio?
— Claro que não! — Afastou-se falando num ar de quem já se considerava crescido o bastante. — Mamãe não é maluca, foram as drogas que fizeram isso com ela, só isso!
— Mas ela foge de alguma coisa que só ela vê, você mesmo disse que ela te contou.
— Às vezes ela fica confusa e diz besteiras, acontece com todo mundo.
Cássio colocou um boné, apanhou o copo esquecido na cômoda, mas franziu a testa quando escutou a voz da avó no quarto ao lado.
— Ela está fazendo de novo — disse baixinho o irmão pequeno, talvez não tivesse percebido, mas encostou-se em Cássio e segurou firme seu braço. — Minha professora disse que não tem nada demais adulto conversar sozinho — comentou olhando aflito para o irmão. — Ela falou que também conversa sozinha de vez em quando e que isso é normal.
— Sei.
— Ela também disse que as crianças têm amigos imaginários e que até certa idade isso é normal e até… esqueci a outra palavra que ela usou… é uma palavra estranha.
— Sua professora deve estar certa — afirmou Cássio, tentando um sorriso que não combinava com a situação. — Melhor ficar aqui, Salvador, não saia do quarto. Depois do almoço nós voltamos e daqui a pouco a vizinha aparece pra te levar pra escola. — Mais uma vez esboçou o sorriso forçado. — Você sabe que a vovó sempre melhora depois que vê a mamãe.
Quando ele deu o primeiro passo para sair do quarto, Salvador o puxou pela jaqueta.
— Não gosto de ficar sozinho. Tenho medo.
Um sorriso gigante explodiu no rosto de Cássio, que se desvencilhou do irmão. — Eu falei que você é medroso. Bebezinho! — desdenhou.
— Não sou não!
Por segundos os irmãos voltaram a brigar, mas Cássio empurrou Salvador e saiu do quarto. Do lado de fora segurou firme a maçaneta até que o irmão mais novo desistisse de forçá-la, tentando abrir. Seus lábios ainda estavam curvados pelo sorriso da brincadeira, mas aos poucos o sorriso foi desaparecendo. Cássio respirou fundo, virou, seguindo devagar pelo corredor, e observou mais uma vez aquele lugar. A casa era velha demais e escura demais. Mais parecia um mini palácio de horrores, igual ao que viu no parque uma vez. Talvez a avó devesse pintar e consertar o assoalho. Isso já incomodaria um pouco menos à noite. Aquele nhec, nhec era igual ao do seriado de terror que ele assistia na TV. Nunca contou ao irmão pequeno, mas muitas vezes, ao passar por entre os quartos, naquele corredor, teve medo de olhar para trás. Pouca luz e muito rangido. Tudo parecia errado naquele lugar.
Pé ante pé ele avançava, tentando chegar à sala, mas a porta do quarto da avó estava entreaberta e não tinha como ele passar sem ser visto.
Pela fresta ele viu sua avó sentada na cama penteando o cabelo de uma boneca. Conversava com ela como se conversasse com a filha internada no manicômio. Contava-lhe segredos e exigia explicações sobre as forças sombrias que as perseguiam. A senhora parecia conhecer os seres sobrenaturais que afligiam a boneca, sua filha. Citava alguns nomes e relatava algumas situações, já começando a ficar tensa e irritada pela omissão da jovem em responder.
— Diga-me, Justine, como eles são? Conte-me, filha, o que eles querem? Por que vieram atrás de você?
Mudando a voz, ela mesma respondeu:
— Não sei, mamãe, não sei… — e fez voz de choro em seguida, como se estivesse muito amedrontada e precisasse de ajuda.
Ela abraçou a boneca junto ao peito de maneira que mais parecia sufocá-la do que acalentá-la da tristeza. Novamente mudou de voz e assumiu o papel da filha:
— Você tá me machucando, mamãe. Preciso respirar.
Cássio ainda segurava o copo e não conseguia desviar os olhos da avó conversando com a boneca e agindo daquela maneira frenética e esquisita, mas a conversa na qual a senhora questionou e ela mesma respondeu, aos poucos foi ficando acalorada até que violentamente a mulher ergueu a boneca pelo cabelo e a esbofeteou, questionando por que, afinal, a filha tinha que enlouquecer. Cássio deu um passo para trás e, sem perceber, logo deu outro quando virou, achando melhor retornar para seu quarto e fazer de conta que nem havia acordado ainda. Deu de cara com o irmão que, com os olhos esbugalhados, o encarava.
— Aaaahhhh! — o grito desesperado de susto veio de um e do outro e o copo na mão de Cássio espatifou no chão. Ele olhou para trás e assim que percebeu os passos da avó, empurrou o irmão, fazendo-o correr em disparada para o quarto. Ambos entraram e Cássio fechou a porta. Respirou acelerado sentindo seu irmão com as mãos grudadas em sua jaqueta.
— Demônio! Demônio! — gritava no corredor a avó. — Por que está fazendo isso com a minha filha? Deixe-a em paz! — continuava a gritar até que começou a chorar.
Os meninos seguiam com os ouvidos grudados na porta e agora era possível ouvir o som da vassoura raspando no chão e até mesmo a pá de lixo recolhendo os cacos de vidro. A senhora ainda fungava como quem estivesse com o nariz escorrendo pelo choro e não deixava de lamuriar pela filha doente.
— Ela vai ficar bem… o lugar dela não é aqui… mas também não é lá… — dizia frases totalmente sem sentido.
— O que você vai fazer? — questionou Salvador, o mais novo dos irmãos. — Tá maluco? Endoidou? Deixa essa porta fechada!
— Ela tá chorando — disse Cássio terminando de virar a maçaneta e puxando completamente a porta. — Pode ser que esteja confusa igual à mamãe. Talvez precise de ajuda. Quem sabe se mude para morar com a mamãe, acho que eu devia falar com a assistente social.
Como quem pretendia ser corajoso, o menino mais velho sorriu para o outro que estava olhando para ele com olhos arregalados. Talvez tivesse achado isso engraçado porque acabou rindo e virou pronto para seguir, mas bem na porta estava parada sua avó, e presa embaixo do braço dela a boneca com a cabeça virada de uma maneira estranha, como se estivesse de olho nele. O brinquedo não tinha qualquer expressão, mas parecia ter todas ao mesmo tempo.
— Aaaahhhh! — gritaram ele e o irmão ao mesmo tempo. — Aaaaahhhh! — gritaram de novo e ambos saíram correndo do quarto, deixando para trás a velhinha sombria e a boneca esquisita.
Alcançaram a porta da frente e forçosamente tentaram abri-la. Quando perceberam que não havia como sair, Cássio escondeu o irmão no canto do sofá e correu para a cozinha. Não demorou muito, a avó entrou e, sobre a mesa, colocou a boneca que, com um sorriso nos lábios, continuava a olhá-lo de maneira estranha.
— Fui eu, vó! — disse atrapalhado o menino. — Não foi o demônio — insistiu enquanto, acuado, ia andando para trás. — Eu derrubei o copo e ele quebrou. Não tem demônio nenhum — falava sem tirar os olhos da avó que ameaçadoramente continuava se aproximando.
A senhora esticou o braço e o menino se encolheu gritando, quando sentiu a mão o alcançando. Primeiro um toque, depois um balançar, quando ergueu a cabeça, percebeu. Estava sonhando, tendo outro pesadelo, e a mão em seu ombro era da assistente social. Aquela para quem ele contou que sua mãe usava drogas e fazia coisas estranhas.
— Sua avó chegou, Cássio. Veio buscá-los. — A mulher sorria e balançava o braço que segurava a mão de Salvador. Seu irmãozinho também estava sorrindo.
— Dorminhoco! Tava até roncando — disse o irmão mais novo e, como cúmplice, a assistente social voltou a rir.
— Vamos, meninos, venham conhecer a avó de vocês.
Enquanto caminhavam, Cássio pensava em mil coisas. O sonho que teve minutos antes ainda o perturbava bastante. Ele foi se arrumando, passou a mão no cabelo emaranhado e tentou ajeitar a camiseta, abaixou-se quando percebeu o tênis desamarrado, mesmo tendo certeza de ter dado nó duplo, ergueu a cabeça quando escutou o irmão conversando com alguém. Era uma senhora, ela estava de costas e parecia prestar mais atenção no que a assistente social dizia do que em seu irmão empolgado. Estava evidente que o pequeno só agora entendia que tinha uma avó.
— Venha, Cássio, venha conhecer sua avó — insistiu a assistente social.
O menino tentou o mesmo entusiasmo já bem perto, mas assim que a senhora virou, ele diminui os passos por reconhecê-la de seu pesadelo. Era a assistente social quem voltava a chamar e o cutucava indicando que ele deveria cumprimentar a mulher idosa e, tentando ser educado, ele esticou a mão.
— Olha só você… eu te conheci quando era de colo, tá grandão… — Sem muito cuidado, a senhora segurou o rosto de Cássio pelo queixo, virando-o de um lado e do outro. — Tudo bem, você deve parecer mais com seu pai, minha menina não tem cabelo enroladinho assim não… mas tá bom. Vamos, meninos, avó tá com pressa, dá tchau pra moça e pega as mochilas.
***
De trem seguiram para casa. Salvador perguntava sobre tudo que via, parecia nunca ter andado pela cidade. Depois andaram de ônibus e, quando desceram, a avó parou na padaria, comprou pão, mortadela e um maço de cigarros. Na casa, mostrou tudo rapidamente, jogou um colchão velho no chão da sala e disse que um deles ia ter de dormir no sofá.
— Essa casa cheira mal, preferia ter ficado com a assistente social. Ela cheirava bem!
— Seu burro! Ninguém fica com a assistente social, no fim do dia ela te leva para um abrigo.
— Então eu preferia o abrigo, porque aqui tá frio, acho que vou pedir outro cobertor pra vovó.
— Não, não… — disse Cássio tentando em vão segurar o irmão que seguiu direto pelo corredor até o quarto onde há pouco a avó entrou.
De onde estava ele viu Salvador bater na porta, abri-la e entrar. Era como se já tivesse visto aquela cena antes. Seu estômago doeu. Cássio, com meio corpo inclinado no sofá, continuava de olho, aguardando, mas passou um tempo e nada do irmão voltar. A dor no estômago só aumentou. Ele deitou e soltou o ar de uma única vez, puxou a coberta e virou de lado. Passou mais um tempinho, ele ergueu a cabeça e voltou a olhar. Nada, nenhum som, nenhum ruído. O que será que estava acontecendo atrás daquela porta? Ele jogou o cobertor de lado, calçou o chinelo e pé ante pé foi seguindo pelo corredor até que parou em frente ao quarto. Logo se lembrou do que viu no pesadelo que lhe pareceu tão real. Esfregou os olhos para ter certeza de que agora estava mesmo acordado. Sorrateiro, encostou o ouvido na porta. Por fim, colocou a mão na maçaneta e a girou, empurrando-a ruidosamente.
Sentados na cama estavam Salvador e a avó. Ela estava com um álbum de fotografia aberto e parecia comentar cada foto. Cássio se aproximou e, curioso, também passou a olhar as fotografias.
“Quem é essa?”, “Onde é aqui?”, “Quando foi isso?”
Eram perguntas seguidas de perguntas feitas pelo irmão mais novo.
— Espera — disse Cássio apontando uma imagem. — Quem é a menina na foto?
A senhora olhou e pareceu esboçar um sorriso.
— É a mãe de vocês. — Agora sim era possível ver um sorriso no rosto da mulher. — Foi uma peça na igreja e ela era um anjo. Viram as asas?
A senhora levantou, seguiu até o guarda-roupa e de lá retirou um cabide no qual asas enfeitadas com penas estavam penduradas. — Ainda as tenho. Não quis me desfazer.
O irmão mais novo sorriu e até correu, já colocando por cima da roupa as asas costuradas, mas Cássio parecia paralisado, com o olhar fixo para dentro do guarda-roupa. Não tirava os olhos de uma caixa gasta em que o logotipo era uma estrela azul e dentro dela havia uma boneca que estava com a cabeça pendendo para o lado, enquanto sorria sem tirar os olhos do menino.
— De quem é essa boneca? — O menino, com a mão trêmula, apontou, questionando.
— Também era da sua mãe… — suspirou a senhora e retirou a boneca da caixa. — Às vezes converso com ela.
O conto A mãe de Cássio é um recorte de vida que mostra traços da infância de Cássio e Salvador, dois personagens que, em suas versões adultas, são protagonistas da Noveleta Dark Fantasy Jardim dos Anjos, publicada por mim em 2015.
Quando a noveleta começa já sabemos que… Oito meses depois de estarem morando com a avó, a mãe dos meninos foi encontrada morta no hospital psiquiátrico. A instituição não soube explicar como ocorrera, mas desde então a vozinha jurava que o espírito da filha estava sendo “chantageado” pelas sombras, as mesmas que perseguiam sua menina em vida. Cássio e Salvador, cresceram ouvindo isso.
Cássio, se tornou alcoólatra. Nunca superou ter entregue a mãe ao sistema que a deixou morrer. Salvador, se tornou traficante. Sempre quis tirar satisfações com as sombras.
Cuidado com o que você diz a uma criança. O inconsciente dela não vai esquecer.